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quinta-feira, 11 de maio de 2017

[Sessão Crítica Ed. Especial] Blade Runner: Uma Aula de Adaptar Histórias



Poucas adaptações conseguem atender com a mesma qualidade às obras literárias. Filmes de grande sucesso, considerados fiéis  às obras de origem, mostram que fidelidade não é tudo para serem de qualidade. Blade Runner mostra que fidelidade é diferente de qualidade.

A versão cinematográfica de Ridley Scott é a prova viva que a maior importância de uma adaptação é manter a essência do original, não uma versão xerocada de imagens compostas. O que funciona numa mídia, nem sempre pode funcionar com a mesma naturalidade em outra (certos filmes de quadrinhos, respeitado por alguns, provaram que não passam só de um álbum de figurinhas compostas de sua origem).

Há visíveis mudanças que já se tornaram de certa forma marcas registradas do diretor. A violência gráfica, bem retratada no livro, e a roupagem mais sedutora e obscura são pontos perceptíveis até mesmo seguidos por outras produções futuristas do gênero, adotada pelo universo “cyberpunk”, uma tendência que pegou nos anos 90 graças a exploração da tecnologia – como os conceitos da realidade virtual, fortissimamente adotada como o próximo grande passo de interação da humanidade ainda no começo da década que posteriormente começou a ser tomada com a notícia dos primeiros passos da internet em 96 - o que praticamente substituiu a teoria de interatividade entre a humanidade através de uma realidade virtual mais prática e mais simples que imaginávamos.

Blade “Lâminas” e Runner “Corredor” ou “Corredor de Lâmina”, numa estranha tradução propriamente dita do título do filme, na verdade se trata de um outro ponto de vista comercial idealizado pelos produtores para vender o filme a um público geral, em comparação ao longo título de Philp K. Dick: “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?” que leva em consideração um questionamento  da humanidade de uma máquina: “Se homens possuem sentimentos, máquinas também ?” num outro ponto de vista filosófico.

Quanto ao título cinematográfico, mais direcionado a profissão do protagonista, leva diretamente ao ponto principal da ação da história – ao invés de focar o plano de fundo que é levado em consideração o título do livro. Seu protagonista, Rick Decard, um caçador de androides, é designado a concluir sua missão. Ao invés do que é detalhado no livro, mais tido como um caçador de recompensas em favor de um objeto de desejo para se firmar na sociedade, é trocado pelo vazio derivado de toda a caça.

Se inicialmente o primeiro roteiro se resumia a apenas um filme de caça e caçador, feito cão e gato, a história apresentada aos cinemas manteve a essência do original: o questionamento filosófico. Foram retirados os detalhes da vida pessoal de Decard e reforçando os vazios não preenchidos pelo livro genial de K. Dick – o senso de humor tornava a obra mais leve do que o tema em questão, fazendo com que tal detalhe provavelmente não seja percebido nem mesmo pelo leitor, apenas acompanhando ou deduzindo sobre aquela situação.

Porém,  com o ambiente “noturno” dos anos 80 em relação ao ambiente mais “colorido” dos anos 60, era logo percebido que estávamos acompanhando uma outra história do personagem Rick Decard. Praticamente uma releitura que não ignora o seu universo, se torna uma expansão ou uma sequência dele. Assim que a história começa, já nos colocamos cientes sobre a existência dos androides fugitivos e da existência dos caçadores de androides. Sendo assim, com um seguimento adiantes com questionamentos mais profundos e vilões ainda mais ameaçadores.

No caso dos androides, assim como no livro, não podemos deduzir visualmente quem são os androides e quem são os humanos.  Porém, no filme, podemos teorizar pistas, como a forma de andar e a maneira de olhar. Roy Batty - o vilão interpretado por Rutger Hauer - por exemplo,  possui força sobrecomum que pode ser aumentada, visivelmente, através da dor.  Já a personagem Pris - interpretada pela musa Daryl Hannah - possui talento multifacetado em acrobacia e usa maquiagem o tempo todo.  Fora os anões vestidos como brinquedos de seu criador, J.F. Sebastian (William Sanderson), que substitui o autista John F. Isidore do livro.

A visão religiosa do livro (o mensageiro Wilbur Mercer que aparece nas visões de Decard e que teoriza a existência dos androides e da humanidade) é substituída por um confronto mais humanizado entre criador e criação – concluindo-se de uma forma bastante cruel (é o ponto mais violento do filme) – parte do que vem realmente acontecendo recentemente entre pais e filhos em favor de um aparente desamparo ou diante de uma delicada decisão.  Não deixa de ser bíblico e prova que o filme não deixa nenhum ponto importante sugerido ou abordado filosoficamente pelo livro. Outra diferença está nas armas, menos sofisticadas do que retratadas na obra original e mais comuns com o mundo atual – as armas com feixes de luz foram substituídas por aparentes armas de efeito comum.
Como uma música clássica moderna , a trilha de Vangelis adere toda a gostosa e misteriosa mágica daquela geração embalada pela música eletrônica – um ponto marcante da indústria oitentista, junto a ascensão tecnológica (retratada pelo mundo do entretenimento, muitas vezes, como algo de outro mundo ou alienígena) - caiu como uma luva por aqui.

Cogita-se uma continuação deste clássico exemplar de adaptação. O importante é que não venham aderir aos vícios da geração retro – que é tentar rebuscar o que já estava bem construído no passado apenas para efeitos de nostalgia – mas de trazer a nós novas histórias, novas formas ainda mais profundas de explorar a humanidade e as suas criações, sem fugir da sua essência (assim como Ridley Scott fez quando atualizou a obra de Philip K. Dick aos anos 80).

Na primeira versão para os cinemas, Decard descreve em muitas falas em off seus pensamentos, uma justificativa encontrada pelos produtores para que o personagem pudesse construir uma conexão menos obscura com os telespectadores de grande circuito. Isso acabou não dando muito certo, já que Blade Runner foi bombardeado pela crítica e obteve fracasso de público na época de seu lançamento. Só 10 anos depois, com o avanço da tecnologia e as teorias envolvendo a realidade virtual, a familiarização com grandes sucessos como Robocop (um mundo visto com uma irônica visão política e violência sem censura do ousado Paul Verhoven); O Exterminador do Futuro 1 e 2 (grandes produções que exploram de forma impactante o terror e o gênero ação, bastante em alta, golpes de mestre do genial e excêntrico James Cameron); e Akira (e a sua visão futurista e caótica dos incríveis mangás japoneses do sensei  Katsuhiro Otomo ) ficaram aparentemente claras as intenções de Blade Runner para um público Geração X, envolvido em globalização e fim do socialismo em um mundo cheio de adolescentes rebeldes, em sua maioria aderindo mais a tendência do que atitude, o filme de Ridley Scott ficou mais bonito para essa geração que (agora) já sabia do que ele estava falando (ou então, Philip K. Dick).


A retirada das falas pode parecer estranha ao espectador tradicional (que assistiu ao original de 82), mas trás ao espectador técnico/ crítico a liberdade de criar o seu subtexto na teoria. As possibilidades de rescrever a história se tornam mais amplas.

A versão final (ou “Final Cut”) encaixa direitinho, e mais mastigada, os pensamentos de Decard, sugeridos nos momentos finais da versão do diretor. Voltamos a nos questionar sobre as memórias perdidas – enquanto Rachel (Sean Young) voltava a tocar piano, Decard (Harrison Ford) se lembra do unicórnio. Diferente da versão do diretor, que vê a miniatura de papel e no fim relembra (o espectador, menos preocupado com as evidências, não associaria a cena do piano).


Definitivamente um trabalho visionário comparado a outras produções de ficção em tempos mais remotos, desde o lendário Metrópolis (1927) de Fritz Lang, e grande idealizador das características que vimos nessas obras (carros voadores e a relação familiar entre homem e máquina) ao acréscimo de um cenário tomado pela decadência ambiental,  fazem de Blade Runner (embora reconhecido tardiamente) um merecido clássico moderno cultuado.

   S E S S Ã O   C R Í T I C A-
BLADE RUNNER: O CAÇADOR DE ANDRÓIDES
Título Original: Blade Runner
Títulos Alternativos: Blade Runner: Director’s Cut; 
Blade Runner: The Final Cut; Blade Runner: Definitive Edition 
Gênero: Ficção Científica
País: E.U.A.
Direção: Ridley Scott
Duração: 
117 Minutos (Versão de Cinema)/ 116 Minutos (Versão do Diretor)/ 117 Minutos (Versão Definitiva)
Ano: 1982 (Versão de Cinema) / 1991 (Versão do Diretor) / 2007 (Versão Definitiva)